março 29, 2004

«American Splendor»



Título Português: American Splendor
Título Original: American Splendor
País de Origem: EUA, 2003
Realizador: Shari Springer Berman e Robert Pulcini
Argumento: Shari Springer Berman e Robert Pulcini
Elenco: Paul Giamatti, Hope Davis, Harvey Pekar, Joyce Brabner, James Urbaniak
Fotografia: Terry Stacey
Música: Mark Suozzo
Produção: HBO
Distribuição Nacional: Atalanta Filmes
Género: Drama, Comédia
Duração: 101 min
Classificação Etária: M/12

American Splendor retrata a saga do autor de banda desenhada Harvey Pekar que, nunca abdicando do seu emprego como arquivista num hospital de Cleveland, encontrou na BD o escape para a sua existência pessimista, revoltada e vazia. Pekar é uma figura derrotista, hipocondríaca e sem ambições prementes na vida. Não obstante, e um pouco à semelhança do percurso do desenhador de BD Robert Crumb, também ele encontrou na forma de expressão artística um veículo para não sucumbir à loucura. Curiosamente, foi um encontro com Crumb numa feira de velharias que abriu a Pekar os horizontes para um eventual futuro promissor como autor de banda desenhada. Sendo o talento de Pekar para o desenho praticamente nulo, limitando-se a esboçar simples figuras amorfas, foi pela mão hábil de Crumb que as suas histórias, ou melhor dizendo, a sua história, ganhou vida e a série de livros American Splendor encontrou o seu nicho de mercado entre os fãs e coleccionadores de BD.

O filme de Shari Springer Berman e Robert Pulcini confronta-se, à partida, com o problema da potencial falta de empatia que o espectador pode criar com a personagem central: o desinteressado e desinteressante Harvey Pekar. É difícil adorar o filme por uma identificação grande com a personagem. Se alguma empatia pelas angústias da personagem pode existir, cedo se desmorona com a repetição de uma rotina do dia-a-dia demasiado frívola. Pekar caminha e deambula pelas ruas, sem ambições, aceitando um trabalho limitativo, ainda que perfeitamente legítimo. Sabemos que Pekar não está satisfeito, mas também não se mobiliza para mudar a sua vida. O filme poderia funcionar melhor se compreendêssemos o passado de Pekar, mas tal não é abordado, nem tão pouco a complexa personagem parece suficientemente desenvolvida.

American Splendor é visualmente interessante. O filme combina de forma inteligente as regras e o estilo da banda desenhada com as imagens reais, como se a vida de Pekar fosse, de facto, tema de um livro de BD e Pekar fosse a atípica personagem, o anti-herói de uma obra de ficção. E, no fundo, tal é verdade. É também interessante a coexistência de Paul Giamatti (Storytelling, Paycheck) e do verdadeiro Harvey Pekar no filme, como se Pekar fosse também uma figura cinematográfica, de tão estranha que consegue ser. Mas se o resultado final é eficaz, em algumas cenas o efeito é um pouco contraproducente porque cliva um fosso entre o verdadeiro Harvey Pekar e a personagem interpretada por Giamatti. Veja-se, por exemplo, a cena da primeira entrevista no programa de David Letterman em que o resultado da montagem transmite ao espectador que Giamatti é uma versão polida, mais cuidada, eventualmente asseada do verdadeiro Pekar.

De qualquer forma, Giamatti reproduz com verosimilhança a solidão, o desespero reprimido e os maneirismos de Pekar. Por outro lado, Hope Davis (Hearts in Atlantis, About Schmidt), no papel de Joyce - activista e companheira de Pekar - confere algum optimismo ao pesado ambiente derrotista do filme, imprimido por Pekar, chegando mesmo a entregar algumas das cenas mais cómicas e a provocar algumas gargalhadas. Joyce não é uma mulher sã; é neurótica e deprimida, não se coibindo de rotular os que a rodeiam com patologias tiradas da bíblia psiquiátrica, o DSM III (na altura). Mas mesmo assim, é Joyce quem concede algum equilíbrio à vida de Pekar e, por conseguinte, ao filme da dupla Shari Springer Berman e Robert Pulcini. Pekar é um homem com problemas de identificação que sofre com a solidão, e a personagem de Hope Davis atribui ainda ao filme a mensagem suprema de que para todos existe uma cara-metade, mesmo para os mais estranhos, ou simplesmente diferentes - como Pekar se proclamava.

Poderá ser difícil de gostar de American Splendor se nos limitarmos a ver o filme como uma obra sobre um falhado que escrevia sobre ser falhado. Mas é aqui que encontro a poderosa lição deste filme. Pekar era, sim, um falhado. A sua BD American Splendor não só o transportava para dentro das páginas dos livros, como as situações neles retratadas eram decalcadas a papel químico da sua vida quotidiana. Consequentemente, todos os que rodeavam Pekar eram também personagens da sua BD. Onde alguns poderão ver doença ou falta de criatividade no processo criativo de Pekar eu vejo uma forma de escapismo e a derradeira prova de mobilização contra o derrotismo. Pekar demonstra que pior que ser um falhado, só mesmo nunca admitir que se é um falhado; pior que o falhado que tenta tirar proveito da sua condição, só o falhado que se confina num processo de comiseração. Se muitos artistas são abençoados com enorme talento e criatividade de forma algo natural, outros contam com uma estrutura psicológica suficientemente forte - que Pekar não tinha - que os permite investir com resiliência e perseverança contra as adversidades da luta criativa. Outros existem ainda, como Pekar, que escrevem sobre eles próprios e sobre os seus problemas; e não vejo mal nenhum nisso.

Em última análise, American Splendor traduz uma mensagem de esperança universal; sobre o trabalho e sobre o amor.

Classificação: 7/10