março 24, 2004

«Capturing the Friedmans»



Título Português: Os Friedmans
Título Original: Capturing the Friedmans
País de Origem: EUA, 2003
Realizador: Andrew Jarecki
Elenco: Arnold Friedman, Elaine Friedman, David Friedman, Seth Friedman, Howard Friedman, John McDermott, Frances Galasso, Joseph Onorato
Fotografia: Adolfo Doring
Música: Andrea Morricone
Produção: HBO Documentary
Distribuicão Nacional: LNK
Género: Documentário
Duração: 107 min
Classificacão Etária: M/16

Os Friedmans são uma típica família norte-americana de judeus de classe média-alta, com uma casa num pacato subúrbio nova-iorquino e um pai de família respeitável e respeitado pela sociedade; professor de renome, com talento musical e um interesse notório pelos primeiros passos de uma era informática que se adivinhava. Esse mesmo pai, Arnold Friedman, com um casamento normal e três filhos, era pedófilo. Ou não? E o filho mais novo, Jesse Friedman, terá participado em dezenas de crimes sexuais também. Ou também não?

Capturing the Friedmans, a primeira obra do realizador Andrew Jarecki, em nada é um filme simples; é antes um poderoso ensaio sobre a família, sobre a justiça, sobre a sociedade e, acima de tudo, sobre a verdade e a nossa percepção da mesma. O documentário dá-nos a conhecer uma família aparentemente normal, como tantas outras, que se desintegra de forma visceral quando uma encomenda do pai é interceptada pelos Serviços Postais e o seu conteúdo tornado público - material pornográfico infantil. Na sequência de um turbilhão de acontecimentos e incredibilidades, Arnold viria a ser preso por pedofilia, e o seu filho mais novo, Jesse, julgado mais tarde, seria também condenado por crimes de abuso sexual contra menores.

Por excelência, um documentário deve provocar debate, motivar reflexões e obrigar o espectador a interrogar-se sobre a realidade em que está inserido. Se o filme documental conseguir cumprir tais propósitos de forma ténue e imparcial, tanto melhor. De notar que a real imparcialidade no cinema não pode, por definição, existir, a partir do momento em que qualquer obra parte do olhar, subjectivo portanto, de alguém. Mas se Michael Moore (Bowling for Columbine) é assumidamente faccioso, Andrew Jarecki transforma Capturing the Friedmans num exercício de subtileza e ambiguidade que consegue ser um paradigma deste tipo de documentários que, sem tomar partidos ou ser maniqueísta, tanto acrescentam a um futuro legado cinematográfico.

O filme de Jarecki diz tudo mas ao mesmo tempo não diz nada. E porquê? Porque a "verdade" é bem mais complexa que simples testemunhos, alegadas denúncias, ou mesmo assumidas confissões na primeira pessoa. Através da confrontação de factos, a "verdade" pode mesmo nunca chegar a existir. E Jarecki relaciona a extrema dificuldade da análise do que é verdadeiro, directamente com os limites, com os excessos e com as falhas que um sistema de justiça assente nessa "verdade" pode conter. E vai mais longe, perguntando se será válida uma manipulação dos procedimentos dos agentes da justiça nessa busca da "verdade". E que perigos tal acarreta? Jarecki levanta as questões, mas não oferece respostas.

Talvez a única verdade que se possa extrair do provocador Capturing the Friedmans seja a existência de uma profunda e inegável disfunção interpessoal no seio da família Friedman. Uma disfunção presente em tantas outras famílias, aparentemente normais, que momentos de crise transporão, de forma explosiva, para fora das quatro paredes do lar. Se crimes sexuais com menores são hediondos e injustificáveis, o que é realmente perturbador no filme de Jarecki é a forma como assistimos ao desmoronamento de uma família que, outrora unida, segue em cinco direcções opostas quando confrontada com o horror. Se uns vivem fases de negação, como o irmão mais velho David, que se recusa a acreditar nos factos imputados à família, outros não se coíbem em deitar por terra décadas de um casamento em conjunto, como a mulher e mãe Elaine. Se a cena de Mystic River em que Laura Linney perdoa e protege o marido Sean Penn do crime que cometeu é constrangedora, aqui a realidade apresenta-se de forma ainda mais desconcertante.

Capturing the Friedmans é um produto concebido e materializado pelo estreante Jarecki, mas não deixam de ser os Friedmans que se "capturam" a si próprios - quer em suportes magnéticos quer na sua própria loucura - com horas infindáveis de vídeos caseiros. Tudo é objecto das suas câmaras amadoras: as férias na praia, o crescimento dos filhos, as banalidades do dia-a-dia… e, de forma bizarra, as discussões privadas e angustiantes de uma família em crise, dividida pela incerteza. Tudo foi registado: os gritos, os choros, as súplicas para que a câmara fosse desligada. No fundo, os Friedmans construíram o seu próprio documentário. E se muitas questões levanta este filme, uma delas será, sem dúvida, qual o tipo de patologia de uma família que filma as suas próprias discussões, ainda mais com condenações e ordens de prisão iminentes?

Numa altura em que o processo Casa Pia dá e ainda dará que falar, Capturing the Friedmans não deve ser confundido com um filme sobre pedofilia. O tema do abuso sexual de menores é apenas - se é que tal pode ser dito - um pretexto para uma análise profunda sobre os infernos latentes em famílias insuspeitas e para um magistral estudo sobre as causas e efeitos de uma família disfuncional, em ruptura. É, também, uma chamada de atenção para a nossa interpretação da "verdade" e para os perigos que essa subjectividade pode provocar em sistemas delicados como o judicial.

Brilhante.

Classificação: 9/10