Título Português: A Paixão de Cristo
Título Original: The Passion of the Christ País de Origem: EUA, 2004 Realizador: Mel Gibson Argumento: Mel Gibson e Benedict Fitzgerald Elenco: Jim Caviezel, Monica Bellucci, Maia Morgenstern Fotografia: Caleb Deschanel Música: John Debney Produção: Icon Productions Distribuição Nacional: Lusomundo Género: Drama Duração: 127 min Classificação Etária: M/16 | |
O polémico filme de Mel Gibson que reconstitui as últimas doze horas de vida de Cristo é mais que um mero filme; é um verdadeiro fenómeno. Em boa parte por toda a controvérsia em que, desde cedo, o realizador e o filme se viram envolvidos, muito antes de alguém ter visto excertos ou imagens sequer. A Paixão de Cristo é um fenómeno de massas que o passar dos dias tenderá a perpetuar.
Além das consideráveis receitas de bilheteira que o filme está a gerar um pouco por todo o mundo, A Paixão de Cristo está a levar ao cinema um certo público que apenas esporadicamente assistia a uma projecção no grande ecrã. A tão balada polémica acerca do carácter anti-semita (ou não) do filme obriga qualquer pessoa a deslocar-se ao cinema uma vez que, mais cedo ou mais tarde, todos terão que ter opinião formada sobre um assunto que, naturalmente, já é e será motivo de conversas informais um pouco por todo o lado, em todos os escalões da sociedade.
O interesse desmesurado dos espectadores reflecte-se numa sala de cinema francamente composta para uma sessão das 13h num dia de semana. Na verdade, não tenho memória de muitos mais filmes que tenham arrastado tantos espectadores para uma sessão de hora de almoço de um multiplex situado numa superfície comercial.
O filme de Mel Gibson é brutal, de uma violência extrema. Qualquer adjectivo é insuficiente para qualificar a brutalidade de A Paixão de Cristo. Na sequência da edição do Fantasporto deste ano constatei que todos os filmes que eram precedidos do aviso “contém cenas eventualmente chocantes” não passavam de meras incursões pelo terror de filmes de adolescentes ou algum gore controlado por uma lógica de mercado em que impera o politicamente correcto. O filme de Gibson é mais chocante que qualquer filme que passou na edição deste ano do Fantasporto; diria mesmo que A Paixão de Cristo contém mais gore que os filmes que estiveram em competição no Porto. E digo ainda que o número de pessoas, certamente constrangidas, que abandonou a sala no filme de Mel Gibson foi superior ao índice de desistências em qualquer das sessões deste ano do Fantasporto.
O filme é tecnicamente correcto, contém uma montagem eficaz e é acompanhado por uma banda sonora adequada e emotiva. O processo de casting não revela uma falha. Ainda que se tenha falado em outros nomes em fases iniciais, tanto Jim Caviezel como a romena Maia Morgenstern e a bela Monica Belluci são perfeitamente verosímeis nos papéis de Jesus, Maria e Madalena, respectivamente. Contudo, não acredito que o filme será lembrado por nenhum dos aspectos que acabei de referir. O filme será lembrado, sim, pela brutalidade das imagens que apresenta, pela crueldade humana retratada de forma quase pornográfica e pela tortura incomensurável que o filme impõe aos espectadores.
O filme de Mel Gibson transpõe, sem margem para dúvidas, a ténue linha que delimita a capacidade do espectador gostar ou não de um filme através da empatia que cria com a obra - com as personagens e com os seus dilemas. Em nome do rigor histórico, Gibson e o também argumentista Benedict Fitzgerald, ousam transportar para o espectador o sofrimento de Jesus nas suas derradeiras horas, sendo o resultado uma experiência totalmente masoquista para quem deveria antes sentir um mínimo de conivência com as imagens que lhe são oferecidas. É impossível adorar o filme, a menos que se acredite que o mesmo se trata da mais fiel reconstituição histórica – e tal não é possível. Estamos no campo dos filmes que são sádicos para o espectador. Relembro-me do austríaco Funny Games, mas enquanto este “brincava” de forma assumida com o público, o filme de Gibson esconde o seu sadismo por trás de um alegado rigor histórico. Mas não deixa de ser sádico.
O cinema não tem que mostrar tudo. O cinema pode sugerir, e sabe-se perfeitamente que o efeito sugestivo pode ser ainda mais forte do que aquilo que nos é mostrado explicitamente. A Paixão de Cristo peca pelo exagero das imagens que apresenta, pelos planos desnecessários, quase gratuitos, de tão chocantes que são. E ao apresentar-se de tal forma, o filme transforma-se numa experiência penosa para o espectador que, juntamente com Maria e Madalena, assiste de forma quase voyeurista ao sofrimento, à tortura e à crucificação de Jesus.
O filme ainda mais penoso se torna ao sermos constantemente relembrados que Jesus escolhe morrer pelos pecados da humanidade. Não há empatia possível, somos arrastados com Cristo para a caminhada da dor. Apenas nos resta a entrega à brutalidade das imagens e à angústia de todo o sofrimento que ainda nos será mostrado até ao momento final. O assumido exagero do castigo, da punição, do sangue, assume proporções de quase glorificação da humilhação humana. E como no filme nada mais é focado senão as últimas doze horas da vida de Jesus, o mesmo falha em transmitir ao espectador aquilo por que Cristo escolheu a morte. Se o filme não acrescenta nada de novo aos factos históricos já sobejamente conhecidos, as duas horas de A Paixão de Cristo alimentam-se da exploração do sofrimento do Messias.
Apenas encontro uma justificação possível para a atrocidade das imagens do filme: a intenção de Gibson mostrar o sofrimento a que, na sua visão, Cristo foi sujeito no processo de condenação. Mas, nesse caso, pelo exagero e ferocidade das imagens, o filme torna-se redutor ao cingir-se a uma sucessiva exploração de cenas de sofrimento.
Um filme para ver mas não rever.
Classificação: 5/10